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AGENDA

23/10/08

Carta para minha mãe, de Georges Simenon

Os sentimentos em relação a uma velha mãe que morre são frequentemente remorsos, mesmo quando já paira a indiferença ante a crueldade de ver destroçar-se o ser que nos deu o ser. Georges Simenon decidira não mais escrever em 1973. Um ano depois ditou este livro, uma carta a sua mãe.

Tinha na altura setenta anos. A obra é escrita, com a ficção literária a ajudar, no tempo presente, reportado, porém, a um tempo passado: Henriette Brüll falecera três anos antes.

Porque se deve ler um livro de sofrimento e com este sofre-se? Pela humanidade que se ganha, mesmo quando dorida. O leitor reencontra-se em cada canto da breve narrativa e, mesmo naqueles que lhe são estranhos, há a presença pertinaz de um mundo possível de que poderia ter sido personagem. «Aprendi hoje que um casal que tem filhos não é apenas um casal», escreve este filho que sabe quanto os filhos «julgam os gestos, as palavras, os olhares de seus pais, impiedosamente», mesmo quando o amor gera a amnésia que tu perdoa, porque tudo esquece.

Carta à minha mãe é um livro duro na forma de exprimir nostalgia, que é o que fica de um amar póstumo, quando o amor em vida não foi possível. É numa grande parte a biografia de uma mulher que nunca ouviu um «amo-te» da boca do marido, que demonstrava amá-la ao estar ali e de si ausente, uma mulher que num segundo casamento, esgotadas as ilusões, encontrou apenas a esperança interesseira de uma pensão de reforma, assim ele morresse, porque nada mais havia já se não o silêncio de dois estrangeiros ou de dois inimigos, mulher a quem a senilidade fez, enfim confundir, como num só, os dois homens, uma alma que vivera a sua feminilidade transformada em domesticidade, num lar mudado tantas vezes, com quartos alugados a hóspedes de ocasião, que a pobreza perseguiu com o seu cortejo de ilusões, forma de matar a fome à realidade das carências.

É um livro de pudor, de um filho que, como todos os filhos, não consegue suportar a ideia indecente de os pais fazerem amor, um livro de ternura por uma mãe a quem a caquexia faz nascer a obsessão do receio de ser roubada, de profunda admiração pela força animal do orgulho, o único arrimo para a sobrevivência. Num dia, já com o fim à vista, devolveu ao filho todo o dinheiro que dele recebera e que conseguira não gastar, remediando-se, vivendo «com o estritamente necessário».

Eis a historia de «um ratinho» diligente, dorido na sua rudeza, de quem em 1942 o genial criador do inspector Maigret já dera, em Pedigree, um primeiro retrato.

«Antigamente os filhos não interrogavam os pais sobre o seu passado». No caso, Simenon escreveu um livro sobre esse passado e, para não perguntar, respondeu por ele.

Um livro notável.

JAB

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