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AGENDA

01/09/10

George Steiner, o transporte para São Cristóvão de A. H...

«When I turned against the Jews, nobody came to his aid. Nobody...»
George Steiner, The Portage to San Cristóbal of A. H. (1979)
Às vezes apercebo-me com alguma mágoa do tempo desmedido que alguns textos de referência internacional levam a ser vertidos para português, se não se tratar de grandes êxitos editoriais confirmados. É o que se passa, por exemplo, com O Transporte para San Cristóbal de A. H. (2007), que George Steiner deu à estampa em 1979, na Kenyon Review, e logo confiou à forma de livro em 1981. Cerca de trinta anos separam a versão inglesa da traduzida para o nosso idioma. Nesse período de espera, o romance foi adaptado ao teatro e levado à cena em Londres e outros palcos que o «Posfácio» do autor, datado de 1999, não especifica. A polémica criada em torno da obra terá sido geral. Que me tenha dado conta, nenhum eco chegou até mim. Pura distração. Outros ouvidos mais atentos terão captado o rumor e falado com os editores. Duvido. O mais provável é que a fama do grande homem da cultura germano-franco-britânica, de origem judaica e pais austríacos, explique a publicação gradual de todos os seus escritos entre nós, incluindo os ficcionados.

O título, algo obscuro para quem desconheça os meandros da controvérsia, remete-nos para um enigmático A. H., que o leitor desprevenido identificará, e bem, com o protagonista do relato. A sigla, mantida estrategicamente no reino das incógnitas, só será desenvolvida, com todo o recato, sem muitas pressas e parcelarmante, no final do terceiro capítulo, que termina com as palabras «Herr Hitler». O alegado nome completo do «homem muito velho», capturado no fim do mundo, no interior da selva amazónica, entre o Brasil e a Bolívia, só será documentado por extenso bastante mais à frente e sem grandes pudores. O mistério da identidade da personagem novelesca estava desvendado, altura de deslocar o centro das atenções para a identificação da personalidade histórica retratada. Questionar a versão oficial da morte do chanceler alemão com a verdade dos factos vividos em privado no derradeiro dia do mês de abril de 1945 no Füherbunker de Berlim. Averiguar, em suma, se o cadáver semicarbonizado ali encontrado pelas tropas soviéticas corresponderia ao do ditador derrotado ou ao de um mero duplo que terá sido sacrificado em seu nome.

A «narrativa ficcional» desenvolvida por Steiner envereda, precisamente, por esta última hipótese, resumida no conhecido princípio literário da «ucronia» definido por Umberto Eco, i. e., imaginar «o que teria acontecido se aquilo que realmente aconteceu tivesse acontecido de maneira diferente»*. Neste caso concreto, medir as consequências da sobrevivência de A. H. ao III Reich e posterior refúgio na floresta virgem sul americana. O seu transporte para São Cristóvão é, tão somente, a primeira etapa de uma peregrinação maior que o leitor está arredado de seguir. Os preparativos de um julgamento supranacional são referidos, as dificuldades processuais adiantadas, as pressões políticas asseguradas. A vontade exercida pela instância narrativa ou a economia do discurso remetem-nos para o universo das suposições nunca concretizadas. É que um dos segredos da arte de contar histórias com palavras reside nos silêncios que consegue espalhar ao seu redor.

Lido o texto, inteiramo-nos que o romancista-ensaísta põe na boca dos atores do drama um conjunto de tópicos recorrentes e sobejamente comentados. Os nomes de deus, os erros da palavra, a questão judaica, as memórias da história, a música e as coordenadas do tempo. Alguns outros se poderiam agregar. Fiquemo-nos por aqui. O problema da comunicação entre os homens está patente em todo o corpus textual, materializado no cruzamento de línguas, culturas, fontes e testemunhos em confronto. O poder de argumentação posto ao dispor do fantasma-vivo de A. H. como mestre da palavra é surpreendente e motivo de todas as polémicas. A verdade almejada habitará com certeza no interior desse labirinto feito de conceções contraditórias. O problema está em conseguir alcançá-la sem recorrer à intervenção divina, tão ausente do nosso quotidiano desde que os redatores do(s) Livro(s) das revelações compuseram o derradeiro parágrafo. Na visão do criador, este Transporte «é uma parábola sobre a dor (...) a dor da recordação, a imperativa mas intolerável dor da lembrança». Por isso foi «escrita com dor». Não o duvidamos, conhecendo minimamente a crueza dos factos. A leitura da «fábula» poderá também ela ser fonte de dor. Tudo depende dos olhos que leem, da forma como veem e do modo como sentem.

NOTA
* Umberto ECO, «Os mundos da ficção científica», in Sobre os Espelhos e outros ensaios. [1985]. Lisboa: Difel, 1989, p. 202.

1 comentário:

Tina disse...

A primeira coisa que chama a atenção neste valioso artigo é a frase em epígrafe «When I turned against the Jews, nobody came to his aid. Nobody...». Aqui começa a dor que é oportunamente salientada, dor que experimentamos no nosso quotidiano face ao desrespeito que continua a grassar entre os homens pelos direitos humanos. Esperemos que a comunidade mundial esteja mais alerta e consiga obviar cada vez mais as situações aberrantemente desumanas que continuam a acontecer no mundo.
A resenha, com a qualidade que é marca do autor, inspira para uma leitura inadiável do livro.