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AGENDA

17/12/10

Gabriel García Márquez, revisitação dos cem anos de solidão...


«...antes de llegar al verso final ya había comprendido que no saldría jamás de ese cuarto (...) porque las estirpes condenadas a cien años de soledad no tenían una segunda oportunidad sobre la tierra.»
Gabriel García Márquez, Cien años de soledad (1967)
Raras vezes volto a reler na íntegra um livro que já tenha lido num tempo mais ou menos remoto. Fico sempre com a estranha sensação de estar a negar-me a hipótese da descoberta de novos horizontes de leitura, de ignorados prazeres estéticos, de mergulhar na aventura das imagens esboçadas com letras, de encontrar o tal livro da minha vida, aquele que teima em escapar-me das mãos. Só que as obras-primas não se encontram com facilidade ao virar da esquina. Então, a revisitação dos clássicos impõe-se. Para todos os efeitos, foram também esses testemunhos abalizados que me ajudaram a crescer e a transformar naquilo que hoje sou, com defeitos e tudo, como convém. É que a perfeição ideal não existe nem na literatura consagrada. Regra geral, sinto a impotência de tecer um resumo minimamente credível que tenha o condão de me recordar esses enredos mágicos, longínquos e fugidios, feitos de palavras esquecidas. Como aquelas que me falavam de uma casa patriarcal, que não parava de crescer, renovar e desfazer, labirinto povoado de seres votados ao mais completo deserto existencial, habitantes compulsivos de todos os silêncios, sem limites nem remissão. Estou a falar da «Casa dos Buendía», que Gabriel García Márquez idealizou há cerca de meio século e etiquetou sugestivamente de Cem anos de solidão (1967).

Depois do livro lido e relido, as palavras voltam a exercer todo o fascínio já experimentado no passado e a imperícia de as parafrasear a repetir-se inexoravelmente. Aliás, o grande mérito das grandes obras de referência abonada reside, como é sabido, na qualidade de se bastarem a si mesmas, sem necessidade de recorrerem a qualquer tipo de amparo externo para se afirmarem como portadoras de sentido. A missão do crítico torna-se em grande parte ociosa ou mesmo inútil. A menos que tenha o bom senso de não querer falar mais alto do que as entidades convocadas pela fábula para nos contarem as suas/nossas sagas. Com toda o decoro que o texto exige, sempre vou dizendo que a história se desenvolve em torno de uma cidade fictícia, criada do nada e por acaso, bem como da dos seus fundadores e descendentes repartidos por quatro gerações, tantas quantas as dos heróis lendários, de seres solitários ao longo de uma centúria bem contada, tal como nos relatos infantis da tradição oral. Nem mais nem menos. O destino trágico registado em sânscrito nos pergaminhos manuscritos do cigano errante, saltimbanco ambulante e sábio alquimista, conhecedor como nenhum outro do percurso familiar dos protagonistas.

Romance de caráter evocativo por excelência, de memórias individuais e coletivas, de fontes antigas e recentes, escritas e orais, de episódios locais e globais. Pouco importa trilhar por esse tipo de sendeiros, todos eles rastreados à saciedade por especialistas e abonados pelo autor. Em Macondo, palco dos dramas contados, tudo é real e tudo é modelizado pela imaginação, base do realismo mágico que povoa todo o emaranhado narrativo e torna ainda mais apetecido o folhear atento de cada uma das páginas em que se inscreve. O engenho inventivo do homem não tem limites visíveis. Até de criar novas leis para o mundo e de as tomar como fidedignas. A escrita tem-se revelado nos últimos cinco milénios uma aliada preciosa para dar voz a essa ilusão edificadora de eternidade. Gabriel García Márquez aprendeu muito cedo a servir-se desse manancial inesgotável e a transferi-lo, à sua maneira, para o universo novelesco dos factos fictícios de possibilidades idealizadas. Um caos inaugural à procura de um caos epigonal. Uma ordem efémera regida por um século solitário a separá-los para todo o sempre. Sem tirar nem pôr. A idade dos heróis dos mitos ancestrais. O ciclo mágico de eventos traçado, porque «as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra». E nada mais há a aditar. O derradeiro ponto final na intriga encerra de vez o relato de todos os relatos. Inflexível, implacável, indiferente à vontade dos leitores de adiarem por mais cem anos a morte anunciada dos solitários da cidade dos fantasmas, das borboletas amarelas e dos médicos invisíveis. A solução será repetir a leitura ou partir para outras fábulas tecidas pela mesma pena e com a mesma mestria, para que a magia da escrita nos volte a surpreender em toda a sua plenitude.

2 comentários:

Tina disse...

Um dos mais ilustres escritores da América Latina - e mundial -, um dos mais apaixonantes adeptos do realismo mágico, de que a memória viva de Saramago também faz parte.
Prof. Artur, a magia das palavras escritas pelo teu punho é outra realidade que faz mover montanhas. Li Cem Anos de Solidão há tantos anos... Mas está numa das prateleiras e já me despertaste um apetite voraz para o reler de novo. Nova leitura do mundo mágico criado por García Marquéz só me pode trazer novas belas horas de prazer.
E foi com imenso prazer que devorei as tuas palavras que parecem fluir com vida própria, a descrever com autoridade na matéria que és mestre.
Obrigada pela partilha!

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

Dizem os mass media que Gabriel García Márquez morreu esta quinta-feira, 17 de abril, na Cidade do México. Pura ilusão, se cada vez que abrimos um dos seus livros ele ali está a contar-nos histórias fabulosas mergulhadas no realismo mágico de que são feitas. As personagens a que deu vida no seu romance mais conhecido é que têm razão. Ouçamos as confidências que nos são transmitidas pela entidade interna que dá voz às personagens:
«Mientras Macondo celebraba la reconquista de los recuerdos, José Arcadio Buendía y Melquíades le sacudieron el polvo a su vieja amistad. El gitano iba dispuesto a quedarse en el pueblo. Había estado en la muerte, en efecto, pero había regresada porque no pudo soportar la soledad…»
Gabriel García Márquez, «Cien años de soledad»