ABRIMOS NOS DOMINGOS 15 e 22 DEZ.

Aberto de 2ª a Sábado
das 10h às 14h e das 15h30 às 19h30
abrimos à noite para as sessões agendadas

AGENDA

23/01/11

Álvaro Guerra, Trilogia dos Cafés: segundo folhetim – Central...


«No meio da Vila que crescia, o Central, que já se chamara República, ficava na mesma. A bica de saco aguentava bem a ofensiva do café expresso.»
Álvaro Guerra, Café Central (1984)
É sempre com uma certa dificuldade que me refiro ao regime político que vigorou em Portugal entre as duas revoluções militares de sinal contrário mais marcantes da centúria passada, a nacionalista do 28 de maio de 1926 e a democrática do 25 de abril de 1974, com a denominação clássica e cronológica de Segunda República, quando os próprios magistrados máximos do país preferiram a etiqueta protocolar bastante mais cómoda de chefe de estado. O mais paradoxal da situação é que nenhum deles deixou de se considerar presidente da república de um muito discutível Estado Novo. Alguma razão haveria com certeza para terem alimentado durante tanto tempo o equívoco. Pouco importa apurar aqui as razões dessa ambiguidade tão peculiar de lidar com os títulos oficiais da res publica. Não seria o lugar nem o momento mais oportunos para proceder a uma tal pesquisa. Os historiadores que o façam se para aí estiverem virados e se acharem que ainda merece a pena nos dias que correm.

Álvaro Guerra também não chamou à colação essa problemá-tica de somenos importância para a consecução do romance. Chamou-lhe Café Central (1984), adotando o mesmo nome com que o galego Manuel Maria rebatizara prudentemente o Café República, ao aperceber-se para que lado tinham começado a soprar os ventos que os conspiradores de Braga tinham levado para Lisboa, a dois passos mal contados do pacato lugarejo da borda-d’água ribatejana que escolhera alguns anos atrás para levar uma vida tranquila e sem sobressaltos de maior. Decisão sábia que lhe permitiu manter o estabelecimento de portas abertas durante toda essa época conturbada de ditaduras disfarçadas e de o transmitir depois ao filho como herança. O cronista oficial da «Trilogia dos Cafés» situa essa mescla de efemérides fingidas e verdadeiras entre o final da segunda guerra mundial e o movimento dos capitães, balizas históricas de particular importância tanto a nível global como local, a que dá o subtítulo sugestivo de Folhetim do mundo vivido em Vila Velha (1945-1974).

O painel intermédio do tríptico mantém a estrutura narrativa inaugurada no anterior. As personagens encontram-se agrupadas em núcleos familiares representativos das diversas forças vivas do burgo. As casas, as herdades, as quintas são as mesmas. Só o estado de conservação de algumas delas e a saúde dos donos se vão arruinando. Nasce-se, vive-se e morre-se como em toda a parte. Umas vezes na paz podre da metrópole, outras nas guerras distantes do ultramar. As alterações são sempre insignificantes e só são arroladas para dar a ilusão fugidia de progresso. A pharmácia passa a farmácia e a Pvide a Pide e depois a DGS, as grafonolas são rendidas pelos pick-up e a mercearia pelo supermercado. A União Nacional é revezada pela Ação Nacional Popular e os ditadores recuperam o nome. A liberdade anunciada pelo Santa Maria não se confirma e a aventura de Humberto Delgado culmina de forma trágica sobejamente conhecida. Salazar cai da cadeira e Caetano sobe ao poleiro. Promessa ilusória da muito falada renovação na continuidade, exaustivamente aclamada pelos canais oficiais postos à disposição do poder instituído, com algum afinco demagógico nas conversas em família dos serões televisivos. A primavera marcelista acalentada por alguns revelou-se uma miragem logo desfeita. A questão colonial vive à sombra dos seculares fumos das índias e ventos do império. Só o narrador atualiza a sua forma especial de contar os factos. A terceira pessoa alterna com a primeira, a objetividade neorrealista luta com a subjetividade neorromântica, o ponto de vista dos intervenientes internos da ficção rivaliza com as opiniões pessoais do autor. Através dos romancistas encartados da crónica, não perde a ocasião de divulgar as novíssimas estéticas do realismo fantástico latino-americano que as gerações seguintes de escritores reais acabariam por assimilar e consagrar entre nós.

Lido o livro na altura em que se festeja o centenário da queda da monarquia e advento da república, em que voltamos a eleger um novo presidente por sufrágio universal, sem ambiguidades nem constrangimentos, ficamos com uma sensação amarga de vazio quanto ao peso dado neste segundo folhetim ao regime fundado em 1910. A liberdade então conquistada é encerrada no forte de Peniche, no presídio de Caxias, nos curros do Aljube, nos calabouços do Governo Civil, no campo do Tarrafal, nas cadeias da Pide, nas picadas perdidas de África. A consolação é que a crónica termina na madrugada do dia dos cravos. Aquela que nos devolveria o direito de restaurar a legitimidade do regime. Mas isso é já o cenário a pintar no terceiro café da série. Entretanto, ficamos com a derradeira pincelada desta saga de sagas, com a representação da cena patética do sorriso de uma das protagonistas feito com «os olhos rasos de água», a provar-nos que nem sempre se chora de dor ou de tristeza. A alegria da mudança tem este efeito purificador que se expressa através das lágrimas incontidas de uma felicidade anunciada ou simplesmente adiada...

21/01/11

Rui Cardoso, autor de Invasões Francesas, 200 ANOS, Mitos, Histórias e Protagonistas

Rui Cardoso nasceu em Lisboa, em Agosto de 1953. Licenciou-se em engenharia no Instituto Superior Técnico em 1977, mas a sua vida profissional foi feita no jornalismo.
Pertenceu à Redacção do saudoso «Diário Popular», de 1977 a 1988 passando, depois pelo semanário «Independente» e pela revista «Face».
É jornalista do Expresso desde Dezembro de 1989, tendo estado na génese do Guia de Portugal, Guia das Cidades, Guia das Mais belas Viagens de Comboio e outros lançados por este semanário entre 1995 e 2003.
É atualmente editor da secção Internacional do Expresso e editor-executivo da revista Courrier Internacional.

Publicou, entre outros livros, uma obra sobre passeios a pé, chamada «Portugal Passo a Passo» (com Abel Melo e Sousa nas Edições Afrontamento, 2002). Seguiu-se o «Roteiro do Turismo Científico em Portugal» (Assírio e Alvim, 2007). Depois, outro livro sobre passeios a pé, agora nas vias férreas desativadas que foi «Pelas Linhas da Nostalgia» (Edições Afrontamento, 2008, com Mafalda César Machado).

O seu último livro - «Invasões Francesas, 200 ANOS, Mitos, Histórias e Protagonistas»-, editado pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda, trata um dos episódios-chave da História de Portugal, através da evocação de episódios envolvendo, não tanto as grandes figuras, mas as pessoas comuns. E confrontando os pontos de vista dos diferentes intervenientes, quer portugueses e ingleses, quer franceses.
Não é um livro de História mas um livro de histórias sobre a História.

Rui Cardoso fala amanhã deste tema que tão bem domina. É no Pátio de Letras às 16h30.

19/01/11

Como salvar o Planeta, segundo Hervé Kempf, no Pátio de Letras

Recentemente editado em Portugal  « Para salvar o planeta, livrem-se do capitalismo » do jornalista Hervé Kempf, responsável pela área do ambiente no jornal diário francês Le Monde. A edição portuguesa do livro ficou a cargo de uma nova editora, a Livre.

O Arenque Fumado no Pátio de Letras

Um arenque fumado está em cima da minha mesa, ao lado do teclado. Está fechado numa caixinha de cartão e não cheira mal.
Começo a desdobrar a embalagem, com muito cuidado porque parece frágil, e a total surpresa: tenho na mão um tríptico colorido cheio de letrinhas e ilustrações tão apetitosas que nem sei por onde começar.

«O Arenque Fumado», de Charles Cros, chega-nos através da Editora Bruaá.
As ilustrações são de André de Loba. O texto começa assim:


Era um grande muro branco – nu, nu, nu,
Contra o muro, uma escada – alta, alta, alta,
E, no chão, um arenque fumado – seco, seco

*
A origem deste poema esteve numa história que Charles Cros contou uma noite ao seu filho Guy. Escrito e publicado em 1872, primeiramente numa versão em prosa, aparece em verso, tal qual o conhecemos hoje, na colectânea de textos de Cros Le Coffret de santal em 1873.
O sucesso deste poema, decorado e dito por gerações de franceses até aos nossos dias, tal como outros textos de Charles Cros, contribuem para o aparecimento do monologue fumiste, género muito divulgado pelo humorista Coquelin Cadet, que encoraja Cros e outros escritores a escrever novos textos que obedeçam a esta estrutura: texto cómico, curto, com uma só personagem e de ritmo rápido. Em 1884, Cadet publica uma antologia de monólogos divididos da seguinte forma: monólogos tristes, alegres, indecisos, verdadeiros e excessivos. Todos eles acompanhados com conselhos para os dizer.
Admirado por Edward Gorey, este terá sido um dos primeiros a ilustrar este texto, traduzido para o inglês por Alphonse Allais. Também por via da admiração que alguns surrealistas sentiam por Cros, André Breton inclui este poema na histórica Antologia do humor negro onde, no texto de apresentação, ressalta "a proeza que resultou ao fazer rodar em vazio o moinho poético no Arenque Fumado".

info Bruaá 
 

Sábado 22, 16h30 -Invasões Francesas, 200 anos

13/01/11

Espaço de Mermória Pátio de Letras hoje no Cultura.Sul

O Cultura.Sul, suplemento mensal do semanário Postal do Algarve, será distribuído amanhã com a edição sul do jornal Público.
Também disponível on line aqui: http://issuu.com/postaldoalgarve/docs/cultura.sul_29
(clicar na imagem para ampliar e folhear com as setas à esquerda e à direita da mesma)

Um muito obrigada pela ampla divulgação proporcionada por este trabalho, em que nos revimos (à excepção da foto, talvez por me ver aí "agigantada"  ... :) .

11/01/11

Boas Notícias para 2011 ... no Pátio de Letras!

Reiteramos votos de Bom Ano Novo. A nossa modesta contribuição…

- lembramos que o IVA aplicável aos livros não sofreu alteração – mantém-se nos 6% :)

- ainda em Dezembro fizemos melhoramentos na zona da tenda da esplanada e, assim que o tempo o permita, faremos manutenção do chão

- esta semana a livraria foi remodelada/ampliada/reorganizada


- temos cada vez mais BONS livros com descontos (10%, 15%, 20%, 40%...) e muitos e BONS livros com preço abaixo ou próximo de 5 €

- temos as novidades das editoras dominantes no mercado mas também de muitas outras pequenas editoras independentes dos grandes grupos editoriais e também de livros e revistas espanholas de Arte e Arquitectura .

- continuamos a reforçar o acervo de livros de referência em ensaio e literatura e a diversificar, com novas editoras, a selecção de livros infantis

- temos ainda CDs de poesia e de de músicos do Algarve e ainda artigos de papelaria (porta chaves, ímanes, memo boards, cadernos, agendas, postais…)

- e SERIGRAFIAS de autores portugueses a preço de crise

- finalmente… retomamos já amanhã as actividades culturais!

Para além do que é divulgado na Agenda Cultural da Câmara de Faro, podem surgir outras sessões agendadas mais em cima da hora, pelo que sugerimos visita regular ao nosso blog e à nossa página no facebook. Também porque, por vezes, há alteração do que foi divulgado na Agenda da CMF - sempre e só por razões de força maior.

E assim sucede este mês de Janeiro com a sessão que ali foi divulgada como tendo lugar no sábado dia 15, mas que por razões atinentes ao palestrante, teve que ser adiada para sábado dia 29. Organizámos entretanto, para o referido sábado 15, uma sessão de charolas, provavelmente a última a ter lugar este ano.

Existimos por si e para si. Contamos consigo para continuar e melhorar!

06/01/11

´Para que servem os Presidentes da República? - sáb. 29, 16h30

ATENÇÂO: ALTERAÇÂO DE DATA: esta sessão, inicialmente marcada para sáb. 15 de Jan. às 16h30 vai afinal ter lugar no sábado 29, à mesma hora, conforme consta já da imagem. Pela alteração pedimos desculpa.


ANTÓNIO COSTA PINTO
Nasceu em Lisboa em 1953. Doutorado pelo Instituto Universitário Europeu (1992, Florença) e Agregado pelo ISCTE (1999), é presentemente Investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Professor Convidado no ISCTE, Lisboa.

Foi Professor Convidado na Universidade de Stanford (1993) e Georgetown (2004), e Investigador Visitante na Universidade de Princeton (1996) e na Universidade da California- Berkeley (2000). Entre 1999 e 2003 foi regularmente Professor Convidado no Institut D'Études Politiques de Paris. É desde 1998 Sub-Director do Contemporary Portuguese History Resource Centre (CPHRC), sendo actualmente Presidente da Associação Portuguesa de Ciência Política. ~

As suas obras têm incidido sobretudo sobre o autoritarismo e fascismo, as transições democráticas e as elites políticas, em Portugal e na Europa. A longevidade do Estado Novo português levou-o inicialmente ao estudo comparado dos sistemas autoritários. Mais recentemente dedicou-se ao estudo do impacto da União Europeia na Europa do Sul. Outro tema a que se tem dedicado é o das elites políticas e as mudanças de regime na mesma área.
 É autor de mais de 50 artigos em revistas académicas portuguesas e internacionais. Foi consultor científico do Museu da Presidência da República portuguesa e tem colaborado regularmente na imprensa, rádio e televisão.
 Entre 1998 e 2000 foi director dos Cursos da Arrábida.
 Foi autor de um programa de rádio, "As Marcas da História" (Antena II), e é actualmente cronista na imprensa escrita e comentador convidado em vários programas de análise política na Televisão.

4ª f 12, 18h: "A história da Ria Formosa e dos seus Cavalos-Marinhos"

Da abundância à escassez dos cavalos marinhos na Ria Formosa ou a história do declínio destes seres místicos num dos seus refúgio, é o tema que Jorge Palma, investigador do Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da UAlg, irá apresentar nesta primeira edição de 2011 da Tertúlia Café Oceano.

Em 2002, a Ria Formosa era um dos locais do mundo com maior densidade de cavalos marinhos, com uma população estimada em dois milhões de indivíduos. Em 2008, só sobravam 300 mil cavalos-marinhos. Para onde foram os cavalos marinhos? O que aconteceu à Ria Formosa num tão curto espaço de tempo? Estas são algumas das questões que serão abordadas por Jorge Palma que lidera um projecto premiado pelo Oceanário de Lisboa, a desenvolver no laboratório de Biologia Pesqueira e Hidrobiologia do Prof. Pedro Andrade, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade do Algarve.

02/01/11

Mathias Énard, Zona: a viagem no tempo à procura do fim do mundo


«...ils parlaient de nos trafics, de la région qu’ils appelaient the area “la Zone” et de leur sécurité, sans dire jamais le mot “arme” ou le mot “pétrole” ou n’importe quel autre mot d’ailleurs à part investment et safety...»

Mathias Énard, Zone (2008)
O fascínio exercido pela epopeia homérica no nosso imaginário coletivo ao longo dos últimos três milénios é surpreendente. Gerações de ouvintes e leitores das rapsódias cantadas em torno da guerra de Troia têm-se encarregado de perpetuar os feitos dos heróis que a travaram ao longo de dez intermináveis anos. Aqueles mesmos seres divinos que depois conquistaram, pilharam e incendiaram sem dó nem piedade a cidade sagrada de Ílion, que encetaram as viagens de regresso aos lares distantes onde deixaram anciãos, mulheres e filhos menores, que enfrentaram as mil e uma dificuldades arquitetadas pelos ciúmes eternos dos deuses imortais pela mortalidade dos humanos. Quem duvidar desta nossa memória multissecular que se dê ao trabalho de pesquisar o número incontável de obras que os poetas têm vindo a recriar desde então até aos nossos dias. Limitar-me-ei a referir uma e a anotar outra, por ajudarem a ajustar as balizas histórico-culturais algo fluidas da modernidade e da pós-modernidade.

A primeira foi idealizada por James Joyce nas páginas do Ulisses (1922), uma extensa e circunstanciada epopeia em prosa que nos põe ao corrente das errâncias urbanas de Leopold Bloom pelas ruas de Dublin, no dia 16 de junho de 1904. As referências diretas ao rei de Ítaca primam pela ausência. O mesmo se diga da totalidade dos aqueus e troianos que povoam a Ilíada e a Odisseia. No entanto, a estrutura épica imaginada pelo ædo de Quios acompanha-nos da primeira à última página do livro, num universo de referências em que a matriz clássica greco-romana é constantemente revezada pela judaico-cristã, situada num contexto bem irlandês de cariz católico-protestante. O segundo texto anunciado deve-se a Mathias Énard, que lhe deu o título algo enigmático de Zona (2008) e se baseia nas deambulações de Yvan Derroy / Francis Servain Mirković pelos trilhos da memória de ex-guerrilheiro croata, ex-espião francês e ex-delator internacional, enquanto percorre de comboio as paisagens noturnas que ligam as gares de Milão e Roma. As aventuras/desventuras dos heróis da imaginação helénica estão bem presentes em toda a efabulação, em assíduo diálogo com os anti-heróis que a realidade mediterrânica foi erigindo desde o tempo da queda das muralhas de Ílion até à noite de 8 de dezembro de 2004, no rescaldo ainda fresco da queda em 9 de novembro de 1989 do muro de Berlim ou de todas as vergonhas.

O romance mais recente desenvolve-se como um longo e único período-parágrafo-frase do protagonista, cuja corrente de pensamento só é interrompida três vezes para dar voz a um relato encaixado de amor e morte vivido na cidade-mártir de Beirute, durante uma das incessantes guerras civis que a têm assolado. No total, as instâncias discursivas necessitaram de 24 capítulos (cifra idêntica às 24 horas do Bloomsday, às 24 rapsódias centradas na cólera de Aquileus e mais 24 para enquadrar a viagem-vingança de Odisseus), para compilar todas as histórias laterais que dão corpo à tessitura nuclear, também ela recheada de flashes episódicos vários, repartidos pelas três margens do Mediterrâneo, ponto de confluência de três continentes, à sombra das cidades que ergueram e derrubaram impérios ou viveram à sombra de outros. Podemos omitir as já registadas e referir Constantinopla, Jerusalém e Argel, que muitas ficariam ainda de parte, todas elas necessárias para definir as fronteiras exatas da «Zona». Aliás o próprio narrador tem dificuldade no seu traçado preciso. O grande espaço cénico dos eventos evocados abrange a totalidade das terras banhadas pelo grande mar fazedor de civilizações. Começa em qualquer ponto do velho mundo e pode até terminar no Vaticano, nos arquivos da cidade-estado mais poderosa dos nossos dias, passaporte para o fim do mundo e para uma vida nova. Entre as bagagens do passageiro-efabulador do grande comboio transitaliano encontra-se uma maleta de mão carregada de documentos, nomes, fotos e relatórios secretos, uma coleção de fantasmas que lhe permitirão abrir as portas para a eternidade.

O texto refere-se muitas vezes ao dilema de Aquiles, o ter de eleger entre morrer jovem na guerra e coberto de glória ou morrer velho em casa, sem honra nem proveito e esquecido de todos. O filho da ninfa Tétis e do rei Peleus optou pela primeira hipótese. Preferiu a fama ao anonimato. Espalhou o luto por toda a parte e acedeu por mérito próprio e vontade de Zeus à ilha dos bem-aventurados. Os deuses estão sempre a surpreender-nos. O Mediterrâneo tem sido desde Troia um berço de heróis. Só que a maioria dos mortos não morará na memória de ninguém. Ironia trágica dos simples viventes como nós, que não têm a proteção divina de nenhum dos progenitores. Aos filhos das sombras só resta mesmo o reino das sombras, o mísero destino dos mortais...