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AGENDA

02/02/14

Teolinda Gersão: histórias reais e imaginadas da cidade de Ulisses

«A Cidade de Ulisses. O nome parecia-nos irrecusável. Havia pelo menos dois mil anos que surgira a lenda de que fora Ulisses a fundar Lisboa. Não se podia ignorá-la, como se nunca tivesse existido.»
Teolinda Gersão, A cidade de Ulisses (2011)
Rezam os registos da memória coletiva que Héracles terá sido o herói mais popular de toda a mitologia grega antiga, entidade semidivina que o panteão romano acolheu ante si de braços abertos, adaptou de bom grado à sua realidade cultural e passou a conhecer com a designação etrusca de Hércules. As referências que lhe são outorgadas pelas obras que sobreviveram à voragem de Cronos são infindáveis. Todavia, esse prestígio passou a ser repartido com Odisseu, sobretudo a partir do momento em que Homero substituiu o papel de figurante que lhe dera na Ilíada pelo de cabeça de cartaz na Odisseia. Teolinda Gersão aproveita essa aura de glória que o devir histórico lhe granjeara, designa-o pela variante onomástica latina que a tradição mediterrânica abraçara e converte-o no fio condutor privilegiado d’ A cidade de Ulisses (2011), romance que dá corpo à lenda de ter sido o rei de Ítaca o fundador de Lisboa. 

Três mil e tal anos após as façanhas épicas, o artífice do cavalo de Troia, o mais humano dos semideuses criados pela fantasia helénica, o protagonista inaugural dum extenso ciclo de aventuras andarilhas, o inspirador de tantos anseios de infinito sempre sonhado e nunca alcançado, onde o desenho romanesco embrionário já se faz sentir, empresta o nome a uma exposição de pintura proposta pelo Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. A fama que o passado fabuloso lhe dera aviva os traços por si deixados na Ulisseum-Olisipo lusitana e demais etimologias improváveis de batizar a futura metrópole e capital imperial dum país com fronteiras globais, inspira um relato de amor-e-morte revelado à posteriori pela voz masculina de quem o viveu e sobreviveu para contá-lo como testemunha privilegiada. A preceito. Como convém numa imitação credível de verdades possíveis. Três vertentes duma mesma sequência de eventos banais, mas engrandecidos com a dimensão existencial que a condição humana lhe confere. 

Paulo Vaz recorda o affaire amoroso com Cecília Branco. Do alfa ao ómega, de ponta a ponta, de cabo a rabo, sem rebuços e ao sabor da pena. Memórias soltas, coisas isoladas, flashes imprecisos, a fluírem em catadupas, de montante a jusante, a preencherem as lacunas instaladas na mente do relator, carente de registos escritos minuciosos do já acontecido, de documentarem com precisão as marcas causadas pela medida arbitrária da duração dos factos. O pintor de profissão e narrador de ocasião recorre à evocação de sucessos dos tempos idos para fazer o ponto da situação dos tempos do porvir. A palavra crise reina. Bancarrota, corrupção, impostos, dívida, falência, fome, buraco orçamental e FMI seguem-lhe a peugada e dão-lhe um toque preciso dos cenários onde se tem representado o drama social português. Cíclico. Preferia que a escolha de tais termos se não fizesse em prejuízo de tantos outros menos prosaicos que a língua está sempre pronta a pôr à disposição dos falantes. O já lido e relido, o já ouvido e reouvido nos jornais, rádios e televisões do nosso dia-a-dia mediático, mil e uma vezes dito e redito, à exaustação, em linhas e linhas de lamúrias mal contidas, registadas em contínuos períodos-parágrafos, sem parar, em páginas e páginas da ficção ultrarrealista que temos entre mãos, sem piedade, acaba por transformar, sem recuo, o prazer da leitura num fardo carregado a contragosto, alvedrio a que só a afeição à literatura concede, de longe em longe, um passe altruísta de livre trânsito. 

No período micénico da cultura europeia, Penélope resiste a vinte anos de espera exemplar pelo regresso do marido. Tece de dia a manta que desfaz à noite. Ulisses partira contrariado para uma guerra gerada pelo arrojo de Páris e volúpia de Helena. Retorna a casa sem lufa-lufas no andar e com planos de desforra no agir. Reocupa o trono, restaura a lei, recupera a mulher. Um trajeto de ardis. No período pós-moderno da cultura ocidental, os sinais heroicos de fidelidade, abalizados por duas décadas de separação conjugal efetiva, é uma ilusão utópica só possível na feição diegética da realidade. O caso de Paulo e Cecília está repartido por três momentos estruturais canónicos: encontro-desencontro-reencontro. Afiança uma nota crítica registada na contracapa do romance terminar essa história escandalosamente bem. Não contradigo a autoridade convocada pelos editores para dar uma maior visibilidade à obra. Limito-me a precisar que o casal se afasta após um primeiro revés para recuperar o equilíbrio perdido em cenários alternativos. Como soe dizer-se, são incomensuráveis os caminhos que conduzem a um apetecido e novelesco happy end.

3 comentários:

Tina disse...

Histórias da mitologia são sem par! Fascinam-me desde jovem, quando o meu pai começou a explicar-me Os Lusíadas e todas as leituras obrigatórias de então, quando o quinto e sétimo ano significavam uma boa educação com cultura. Por isso, o início do romance já me atrai, lembrando-me o livro que tenho em casa sobre Lisboa mitológica.
Já assisti a reencontros de casais, pelo que o final feliz não me surpreende embora, como bem diz, Prof., a fidelidade de Penélope é algo mitológico nos nossos tempos...
Ótima recensão estruturada no tempo, sem esquecer as vicissitudes que ensombram o nosso. Não faltou nada para apimentar a apetência pela leitura deste livro de uma autora que muito aprecio! Obrigada pela partilha, Prof.!

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

Os mitos explicam os mistérios que nos rodeiam, as religiões sistematizam as interpretações encontradas, a literatura transforma as certezas do sagrado nas possibilidades do faz-de-conta. Os poetas inspiram-se no fundo lendário da idade dos heróis e transferem-no para o cenário histórico das epopeias escritas. Camões fê-lo em verso, Teolinda Gersão em prosa. Os protagonistas d’ «A Cidade de Ulisses» acrescentam a dimensão plástica de imitar a vida com imagens pintadas. O rei de Ítaca nunca terá posto os pés em Lisboa. Homero não achou relevante documentar esse facto na «Odisseia». A necessidade da visita prestigiante só será sentido a séculos de distância. Os universos imagéticos da ficção entram em cena, o episódio da fundação surge do nada e a tradição impõe-se. As leituras continuadas da fábula inventada garantem-lhe a permanência na memória coletiva dos povos que a sentem sua. As reescritas dos factos feitos avivam o interesse. Os comentários que vão suscitando atualizam a sua existência. Obrigado, Tina, pelas palavras simpáticas que valorizam a visita continuada a este pátio de letras depois de lidos os livros…

Numa de Letra disse...

Gostei muito...
http://numadeletra.com/a-cidade-de-ulisses-de-teolinda-gersao-56804