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AGENDA

22/06/14

Thomas Mann, os exercícios do livre-arbítrio de Mário e o Mágico…



«Die Freiheit existiert, und auch der Wille existiert; aber die Willensfreiheit existiert nicht, denn ein Wille, der sich auf seine Freiheit richtet, stößt ins Leere.»
Thomas Mann, Mario und der Zauberer (1930)
No percurso biográfico do homem, a predestinação e o alvedrio perseguem-se passo a passo. Nenhum ser vivente foi ouvido no ato de que nasceu e ninguém lhe ouvirá dizer o dia em que morreu. Entre o alfa e o ómega da sua existência efémera de ser diferenciado, terá de gerir a herança genética duma estirpe que não escolheu e que só poderá prolongar a meio gás. A menos que o fator incesto se meta de permeio e altere os cálculos. A vontade existe, mas está limitada pelo tempo. O antes e o depois não contam. Só o presente estabelece a ponte entre o que já foi e o que ainda está para ser. Thomas Mann desenvolve o tema da liberdade que existe latente em cada um de nós em Mário e o Mágico (1930), uma escassa centena de páginas dispostas em forma de novela com um pano de fundo dramático bem visível no horizonte. 

O relacionamento conturbado dos dois antagonistas que dão título à obra é-nos transmitida a posteriori pela voz vienense dum veraneante austríaco de férias familiares em Torre di Venere, estação balnear da costa italiana do mar Tirreno, em finais dos anos 1920. Fá-lo utilizando uma primeira pessoa singular que se dirige de modo confessional a um interlocutor desconhecido na segunda pessoa plural. O tom empregado no relato circunstanciado de recordações desagradáveis revela um grande constrangimento, funcionando como uma verdadeira catarse dos factos testemunhados a contragosto numa noite quente de agosto, em que o abominável Cavalieri Cipolla, forzatore, illusionista e prestigitatore, entrou em cena no barracão de tábuas convertido em sala improvisada duma soirée de magia e se começou a desenhar a inevitável catástrofe. 

A estrutura da tragédia é detetável em toda a representação mimética narrada. Um prólogo feito com palavras carregadas de sátira amarga e dura para descrever o ambiente político-social que antecedeu o espetáculo. Um párodo preenchido com a entrada tumultuosa e impaciente do público transformado num coro coletivo de emoções a ocupar a orquestra do teatro. Um conjunto de episódios / estásimos de avanços e pausas na ação, a ser preenchido à vez pelas falas dos atores-hipócritas e pelos apartes do narrador-corifeu. O êxodo rápido de todos, após a queda do farsante ao som de duas detonações de pistola abafadas pelos aplausos e gargalhadas dos assistentes. O Mágico desafiou os limites da liberdade individual de Mário e foi punido exemplarmente como é costume acontecer nestes arremedos de vida de seres aparentados com os deuses. Híbris lhe chamavam os gregos. Arrogância lhe chamamos nós. Para o caso tanto faz. 

Na parábola inventada pelo grande mestre das letras alemãs, o hipnotizador encartado é derrotado pelo camariere, um simples empregado de mesa que recusou ser humilhado publicamente, que não quis ser tratado como um novo Ganimedes mítico trazido para a modernidade decadente degli anni ruggenti vinti, que se opôs a ser um mero boneco articulado nas mãos dum manipulador profissional de segunda ordem. Na alegoria composta pelo já então prémio Nobel da literatura, a ascensão do regime fascista mussolínico está latente em cada página da ficção moldada com dados factuais. É um alerta que o novelista lança a todos os leitores, numa altura em que o espaço cénico europeu sucumbia um pouco por todo o lado aos avanços vertiginosos dos totalitarismos de partido único e saudação romana de braço estendido. Premonição confirmada pouco depois pela implantação do regime nazi no império hitleriano, que obrigariam o expatriado Thomas Mann a procurar o refúgio suíço e a aceitar a cidadania americana. 

A literatura não tem idade e não se mede pelo número de palavras selecionadas para gizar um enredo. É intemporal e imensurável. À distância duma guerra mundial e duma guerra fria, as querelas sem quartel dos nacionalismos travadas a montante e a jusante duma cortina-de-ferro que em tempos existiu voltam a assombrar as ribaltas do velho continente e da aldeia global. Todas elas são assustadoras e ultrapassam em muito as fronteiras palpáveis do reino da fantasia. Os truques de cartas e de números são manejados incansavelmente pelos tiranetes despóticos de meia-tigela já alojados neste terceiro milénio. A história só não se repete, porque a musa que a rege lá vai tendo o cuidado de expor os mesmos conflitos intergeracionais com roupagens renovadas. O homem está condenado a ser livre. Que o seja em vida, antes que a morte o surpreenda e remeta para o mundo acabado da perfeição. A dignidade da raça humana passa pela coragem de exercer o sinal do querer, de resistir ao poder da sugestão, de violar os ditames da prepotência, de ser o artífice do seu próprio destino. Custe o que custar e doa a quem doer. Anche se no vuole!...

2 comentários:

Tina disse...

Magnífica recensão, que levanta levemente a ponta do véu sobre o enredo de um romance que se adivinha envolvente e pedagógico, como muito bem refere o Prof. Artur ao salientar, mais uma vez, os riscos de uma nova era de nacionalismos exacerbados... Um levantamento mais que suficiente, que delineia o quadro do teatro onde decorre a cena mais importante da trama....
De um autor mais que reconhecido, um Nobel da Literatura cujos romances A montanha mágica, A morte em Veneza e José e seus irmãos muito me marcaram, é uma sugestão que não deixarei de seguir.
Obrigada, Prof., por mais esta pedagógca partilha!

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

Esta novela prenda de anos fez-me chegar à memória ecos desses relatos que povoaram o meu imaginário de jovem leitor de histórias contadas por escrito e através do pequeno e do grande écran. As visitas mensais da carrinha da biblioteca itinerante da Gulbenkian ajudaram-me em muito a entrar em contacto com os ditos clássicos da literatura universal. Thomas Mann não fugiu à regra. As recordações que guardo das intrigas d’«A montanha mágica» ou da saga d’«Os Buddenbrooks» não são muito claras, razão mais do que suficiente para fazer revisitar um dia destes cada uma dessas narrativas exemplares. Deverei também reservar um espaço-tempo confortável para a «Morte em Veneza» que só conheço através da versão cinematográfica.